sexta-feira, 6 de maio de 2016

Nosso treinamento precisa melhorar.

Desde 1987, o FBI, a polícia federal americana, conduz investigações anuais sobre policiais agredidos e mortos nos Estados Unidos. Se você não sabe disso ainda, é hora de se atualizar. E se você se preocupa com a sobrevivência nas ruas, precisa ter uma impressão dos dados mais recentes para aproveitar toda informação capaz de ajudá-lo a continuar a salvo.

Num desses relatórios, 40 confrontos entre 43 criminosos e 50 policiais foram selecionados. Nele, alguns delinquentes admitiram que portavam armas de fogo desde os nove anos de idade. Eles também disseram que andavam armados a maior parte do tempo. Para a maioria dos policiais brasileiros isso não é surpresa, já que muitos criminosos violentos possuem menos de 18 anos de idade.

Mas pense nessa informação em comparação com os novos alunos que chegam às academias de polícia. Quantos já manusearam uma arma? Quantos já dispararam uma arma de fogo antes? Provavelmente uma minoria. Basta observar que até policiais da ativa encontram dificuldades para comprar armas importadas, munição e equipamentos de qualidade. Atiradores profissionais não conseguem viver do esporte e destinam parte do salário dos empregos que possuem para bancar as necessidades do treinamento. Existem poucos estandes de tiro de excelência, sendo comum policiais e militares “treinarem” em alvos improvisados contra barrancos ou pedreiras. Se quem gosta do esporte ou trabalha com armas de fogo encontra tamanha dificuldade, o que dizer do jovem que pisa numa academia de polícia pela primeira vez.

Mas algumas pessoas ainda vão dizer que os novos alunos não precisam estar familiarizados com armas de fogo, pois eles aprenderão o que é preciso durante o treinamento na academia. Até aqui tudo bem, se o treinamento for adequado, com recursos materiais e financeiros suficientes e carga horária farta. A vida do policial é muito importante para ser submetida a treinamentos rudimentares por falta de dinheiro e tempo.

Bem, e o que ocorre quando os policiais recém-formados deixam as academias de polícia? Quanto treinamento eles recebem depois que tomam posse? Com as dificuldades já mencionadas e a cultura desarmamentista, provavelmente a maioria dos policiais jamais receberá outro treinamento. Aqueles que tiverem alguma sorte talvez recebam um ou outro treinamento de tiro antes de se aposentarem. Alguns pagarão por cursos em escolas particulares, e pouquíssimos abençoados participarão de um programa de treinamento contínuo.

Contudo, de acordo com o estudo do FBI, os criminosos “treinam” com suas armas de modo regular. Por incrível que pareça, 80% dos criminosos entrevistados alegaram participar de aproximadamente 25 sessões de “treinamento” por ano. Então, analisando apenas a frequência de treino, quem está mais preparado para um confronto armado: o policial ou o criminoso?

Analisando outros aspectos dos treinamentos, quantos deles envolvem apenas dispor os policiais numa linha de tiro estática e ordenar que disparem contra um alvo de papel ao invés de atirar enquanto se movem e buscam proteção? Se o policial está barricado, ele pode ficar no mesmo lugar enquanto for seguro. Mas se ele não está protegido, então é preciso ensiná-lo a se mover em busca de uma barricada. Quantos agregam posições de tiro incomuns e distâncias variadas? Você precisa experimentar posições diferentes, pois nem sempre vai estar em pé e totalmente de frente para o agressor. É preciso entender que a distância do alvo é que determina a cadência do tiro. O dinamismo num treinamento é fundamental, pois é a regra num tiroteio!

O problema com a proteção é que a maioria não pensa sobre isso até que seja tarde ou não exista mais uma barricada disponível. Mais uma vez, as estatísticas do FBI informam que a distância entre os policiais e seus assassinos, em 50% dos casos, ficou entre zero e 1,5 m. O intervalo entre 1,8 e 3 metros representou 19% das ocorrências. Assim, quanta proteção pode existir quando o confronto ocorre a curta distância?

Infelizmente é da natureza da atividade policial estar próximo e lidar com pessoas indesejadas todo o tempo. Você não consegue algemar um criminoso a dez metros de distância. Você não pode realizar uma busca pessoal a cinco metros. Para fazer isso, é preciso estar perto do suspeito; e não existem muitas proteções disponíveis em situações assim. Portanto, o policial precisa aprender a se mover para criar alguma dinâmica que force o criminoso a se adaptar à mudança e perder tempo precioso. E quem perde tempo, tem mais chance de perder o confronto.

Então, é necessário algum treinamento de tiro em movimento. Além disso, você precisa realizar exercícios de tiro a curta distância. O argumento de que um policial que atira bem a 15 metros distância, também consegue acertar o alvo a três metros está em desacordo com as dinâmicas e com as pesquisas sobre o estresse físico e emocional dos confrontos armados. Quantos policiais já não erraram tiros a poucos metros (ou centímetros) do alvo em ocorrências reais?

E quantas vezes você já ouviu isso: “Pressione o gatilho lentamente até que o disparo ocorra de surpresa!” Isso se aplica, e muito, ao aprimoramento dos fundamentos do tiro preciso. Você tem que saber distinguir as coisas. Mas faz sentido num conflito repentino e a curta distância? Claro que não! Primeiro, você está mandando projéteis letais, logo, os disparos não podem pegá-lo de surpresa. Segundo, você realmente acha que vai pressionar o gatilho lentamente enquanto alguém que “treina” 25 vezes por ano está tentando matar você a um metro e meio de distância? Entenda que você pode pressionar o gatilho o mais rápido que puder. O que você não pode fazer é empunhar mal, sacar mal, apresentar mal e apertar o gatilho sem controle como se estivesse com medo da arma.

Portanto, os policiais precisam treinar do mesmo jeito que lutam. É por isso também que técnicas mirabolantes de imobilização não funcionam numa briga real, já que o oponente não vai esticar o braço e esperar que você aplique a imobilização perfeita. Então, aquilo que no estande de tiro ou no tatame algumas vezes parece divertido, não tem a menor graça nas ruas.

Assim, ao considerar qualquer treinamento, você deve se perguntar: “É simples? Faz sentido no mundo real? Oferece um plano B ou C, caso a primeira alternativa não seja viável?”

Por exemplo, algumas dinâmicas não ensinam a atirar recuando, pois a teoria diz que se o policial se move lateralmente, ele consegue sair mais rápido da linha de tiro do criminoso. Agora, faça as três perguntas. O treino é simples? Sim! Faz sentido no mundo real? Depende! Oferece opções? Não!

Suponha que você está progredindo por uma viela. De repente, o suspeito aparece e dispara contra você. Avançar na direção do atirador é uma opção (kadima, como dizem os israelenses), mas não a melhor para esse momento. Você não pode se mover lateralmente porque a viela é estreita. Então recuar enquanto você atira é a melhor opção. Mas isso ninguém ensinou! Limitar o policial a aprender apenas uma forma de fazer as coisas não faz sentido porque no mundo real é importante ter opções.

Entretanto, você não pode colocar toda a culpa no instrutor. Quantas vezes os colegas aparecem para os treinos? Quantos vão ao estande de tiro com comportamentos ruins? Quantos policiais enxergar uma arma de fogo como uma ferramenta qualquer, semelhante a um computador ou uma caneta? Quantos dizem que já sabem atirar porque não querem aprender algo novo.

Você não precisa passar dias estudando os dados do FBI. Basta assistir os vídeos que circulam nos grupos policiais do Whatsapp. Se a realidade não o convencer de levar o treinamento mais a sério; se não fizer as organizações policiais melhorarem o treinamento, então, nada vai fazer!

https://www.fbi.gov/about-us/cjis/ucr/leoka/2014

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Alguém tem que melhorar! Sejamos nós!

Neste texto, compartilho o conteúdo de uma entrevista concedida a um aluno do curso de formação de oficiais da academia da Polícia Militar do Mato Grosso.


Para o senhor, o que é a sobrevivência policial?

Sobrevivência policial é a capacidade de permanecer vivo nas situações adversas. Essa capacidade pode ser nata, pelo simples desejo de continuar vivo, ou pode ser aprendida através do treinamento mental, físico, comportamental e técnico.


Qual a visão (política, social e legal) que o senhor tem sobre a violência contra policiais?

A violência tem sido uma via de mão dupla e um círculo vicioso. Quer dizer, o desamparo institucional e governamental que sugerem que a polícia é “um mal necessário”, uma “fonte de problemas” e a única culpada pela insegurança pública; a aparente dissintonia entre os Poderes; a parcialidade da imprensa, muitas vezes descompromissada com a verdade e a justiça; e a desconfiança por parte dos bons cidadãos impedem que o profissional de segurança compreenda e internalize que seu dever é PROTEGER e SERVIR o cidadão. Então, a primeira ideia que todo policial incorpora é que ele deve somente COMBATER o crime, mas como se TODAS as pessoas fossem inimigas ou dignas de desconfiança. Ele tem aprendido, pela prática, que está sozinho, sem liderança e sem apoio. Ainda que o CRIMINOSO seja um inimigo, o trabalho policial é consequência da necessidade de se proteger os inocentes e os indefesos.

Infelizmente, o resultado da omissão, da incompetência e do amadorismo com que a segurança pública e o homem de polícia (principalmente aquele que está na base da pirâmide) são tratados ficam visíveis nas interações entre o público e a polícia. Estranhamente, a primeira vítima desse desamparo é o próprio policial. Sem que perceba, ele transfere para a comunidade toda carga negativa que recebe, sendo insensível aos problemas dos cidadãos ou utilizando a violência sem necessidade. A segunda vítima (e vítima duas vezes) é o bom cidadão, igualmente abandonado, sozinho e indefeso diante do criminoso. A situação do cidadão é ainda pior, já que seu direito à autodefesa, por meio da arma de fogo, não é respeitado pelo Estado.

Desse modo, o cidadão não enxerga o policial como um protetor, e isso reforça sua rejeição ao aparato policial. A falta de reconhecimento social, então, reforça o abandono experimentado pelo policial. Assim, ele continua seu trabalho acreditando que seu objetivo principal não é a salvaguarda social, mas apenas o combate. O combate é necessário, mas sua razão principal é a proteção das pessoas indefesas.


Seria interessante uma disciplina que abordasse esse assunto nos Centros de Formação profissional? Por quê?

Sim, seria interessante. Porém, mais que interessante, a disciplina “sobrevivência policial” e os aspectos envolvidos na violência contra policiais deveriam ser obrigatórios em qualquer curso de formação profissional.

A inclusão dessas disciplinas reforçaria o entendimento de que o trabalho policial é perigoso por natureza, mesmo quando não se está “trabalhando”. Também poderia contribuir para o início de ESTUDOS DE CASOS NACIONAIS referentes à atuação dos policiais durante e fora do serviço, bem como a coleta e análise de dados estatísticos sobre a vitimização de policiais no Brasil. Tudo visando estabelecer normas, técnicas e procedimentos para a salvaguarda do policial.

Dados estatísticos são produzidos todos os dias, ano após ano, sempre que o policial sai para o trabalho. Entretanto, não conseguimos extrair os ensinamentos deixados por aqueles que foram feridos ou mortos. Fala-se sobre a letalidade da polícia, mas nada é dito sobre a morte de centenas de policiais todos os anos. Nem mesmo as instituições policiais se preocupam em descobrir o que deu errado e o que precisa ser melhorado na atividade policial.

Muito é feito para tornar a vida do criminoso melhor, contudo quase nada é realizado para tornar a vida do policial e do cidadão menos sofrida e perigosa.


Na opinião do senhor, faria diferença na atuação prática do policial, caso seja implementada essa disciplina, nas ocorrências em horário de folga?

Certamente. Os conflitos envolvendo criminosos e policiais em serviço se diferenciam das circunstâncias nas quais os policiais estão de folga. Contudo, os princípios da sobrevivência policial se aplicam ao homem, e não somente ao trabalho policial. Portanto, servem para todos os horários e situações. Desde 2007, todos os treinamentos de tiro que implementei tinham relação com a sobrevivência policial, principalmente nas situações fora de serviço.


Hoje, para o senhor, o policial sai de um centro de formação preparado para defender-se nas situações de folga?

É difícil concluir, pois os cursos de formação variam de acordo com a instituição policial, o Estado, o posto ou graduação do aluno, o tempo de formação e os recursos disponíveis. Por isso, é razoável afirmar que os cursos abrangem desde o mais amador até o mais profissional POSSÍVEL.

Pessoalmente, creio que os centros de formação não preparam o policial para sobreviver nas situações de folga e ainda não alcançaram um patamar aceitável para sobrevida durante o serviço. Isso não tem relação apenas com a disciplina “sobrevivência policial”, mas incorpora o comprometimento institucional, o apoio psicológico, o preparo mental e físico do policial, seu treinamento após a formação, a utilização de ARMAS CONFIÁVEIS e de QUALIDADE INTERNACIONAL (eu disse INTERNACIONAL), tecnologias menos letais, treinamento continuado, viaturas e uniformes adequados, produção de dados e informações para elaboração de estudos de casos, etc. Incorporam, acima de tudo, o compromisso do próprio policial e a INTER-RELAÇÃO DE TODAS AS DISCIPLINAS dos cursos de formação (como se fosse apenas uma).


O senhor poderia explanar sobre experiências em casos de violência contra policiais?

A violência contra o policial tem início na própria instituição que ele representa. Abrange desde questões disciplinares como forma de perseguição, baixos salários, separação e ineficácia do trabalho, imposição de uma obediência subalterna (um contraponto à capacidade de pensar, decidir e agir com autonomia), etc. O policial também protagoniza uma violência contra si mesmo quando se afasta do treinamento físico, do treino de tiro; quando negligencia sua própria segurança por não investir em equipamentos de qualidade, etc. Ainda que não seja uma violência física, essas questões prejudicam o emocional e o psicológico do policial, além de produzir um acentuado grau de desmotivação profissional entre policiais que poderiam representar uma FORTE E POSITIVA LIDERANÇA PARA OS NOVATOS, visando uma mudança cultural e a interrupção daquele círculo vicioso que mencionei. Se isso ocorresse, todos (Estado, cidadãos, instituições policiais e os próprios policiais) compreenderiam o valor da segurança pública e o verdadeiro dever cívico da tarefa que desempenham.

O ambiente de trabalho melhorado para TODOS favoreceria o estreitamento dos laços de amizade e irmandade, e de cuidado e proteção entre os policiais e seus familiares. O apoio da comunidade, da imprensa e do Estado melhoraria a autoestima do policial e a percepção da importância do seu trabalho. Tudo isso seria revertido em benefício do cidadão e do país.

Entretanto, isso está longe de acontecer e a violência que fere e mata aos poucos o policial começa assim que ele se prepara para o trabalho. Já a violência física está estampada nos telejornais e nos altos índices de assassinatos e suicídios de policiais, sem que ninguém se importe com isso!

Um policial desmotivado e abandonado é um policial a menos! Um policial respeitado e ciente da sua função tem valor inestimável!