quinta-feira, 1 de julho de 2010

O ofício do desalento

Após a última prova de tiro, os alunos, eufóricos e radiantes, se aglomeravam na expectativa de assistirem o vídeo produzido por um dos professores e que demonstrava uma pequena, mas importante fase do curso de formação policial, e porque não dizer, da vida de 600 futuros policiais.

Dias antes eu havia dito para alguns alunos que não existia um policial sequer que não tivesse passado por aquela academia e experimentado a ansiedade e a alegria que eles sentiriam em poucos instantes. Era tudo que meu coração podia dizer para aqueles novos e vibrantes colegas. E sobre as tristezas e os desânimos... Isso eu guardei só pra mim! Mas um amigo não mediu suas palavras ao me orientar no início da minha carreira. Ele disse: “Se o tiro for pra esquerda, corra pra direita! Se o tiro for pra direita, corra até o banco e saque o seu salário! Você não vai mudar o mundo! Ele sempre foi e sempre será assim!”

De qualquer forma, para ingresso na polícia, o candidato deve, conforme edital, possuir diploma de conclusão de curso superior. Se aprovado no concurso, ele executará investigações e operações policiais na prevenção e na repressão a ilícitos penais, bem como desempenhará outras atividades de interesse do Órgão. Mas antes disso, cada aspirante estuda, estuda, estuda e estuda. Treina, treina, treina e treina. Para muitos, são anos nesta rotina.

Então, há uma prova objetiva de conhecimentos gerais (língua portuguesa, informática, atualidades, raciocínio lógico, administração, microeconomia, contabilidade, direito e legislação especial). Segue-se uma prova discursiva. A avaliação psicológica identifica a capacidade de concentração e atenção, o raciocínio, o controle emocional, o relacionamento interpessoal, a capacidade de memória e as características de personalidade. Depois disso, é a vez do exame médico, que de tão criterioso possui norma própria. O exame de aptidão física inclui testes de barra fixa, impulsão horizontal, corrida e natação. Os policiais mais antigos precisaram, além disso, correr 100m, saltar sobre uma barra horizontal, subir 7m numa corda e saltar em distância. Logo é a vez da investigação social requisitar informações pessoais e certidões infindáveis.

Primeira etapa concluída, vem o curso de formação profissional, em regime de semi-internato e/ou internato, exigindo-se do aluno tempo integral com frequência obrigatória e dedicação exclusiva. Dedicação que o acompanhará pelo resto da vida “e, se necessário, com o sacrifício da própria vida”. É o que diz o Juramento do Policial.

Durante mais de quatro meses, cada futuro policial estuda técnicas de abordagem, armamento e tiro (disciplina que utiliza mais de 1.000 tiros por aluno), atividade física policial, balística, bombas e explosivos, controle de produtos químicos, segurança privada, crimes cibernéticos, crimes violentos, criminalística, defesa pessoal, direção operacional, direitos humanos, ética e deontologia policial, gerenciamento de crises, identificação papiloscópica, incêndio florestal, inteligência policial, crime organizado, estudo da polícia, investigação policial, informática, lavagem de dinheiro, arquivologia, comunicação social, organização administrativa da polícia, defesa institucional, imigração, meio ambiente, repressão a entorpecentes, crimes fazendários, polícia judiciária, crimes previdenciários, pronto socorrismo, radiocomunicação, regime jurídico, regime disciplinar, segurança aeroportuária, segurança de dignitários, sistema nacional de armas, técnicas de domínio tático, entrevista e interrogatório, tráfico ilícito de armas e vigilância. Os mais antigos ainda estagiavam durante 5 dias na unidade de operações especiais. Semanalmente, todos cantam o Hino Nacional e o Hino da Polícia durante as solenidades de hasteamento das bandeiras. Todos cantam, todos vibram, todos os dias!

Depois do curso de formação e da escolha de lotação, que ocorre de acordo com a nota obtida durante o curso, os novos policiais são nomeados e tomam posse, deixando para trás familiares saudosos, porém orgulhosos. Cada um recebe um kit (uma pistola Glock 9mm; três carregadores; um par de algemas; a carteira funcional que garante livre porte de arma e franco acesso aos locais sob fiscalização da polícia, sendo assegurada, quando em serviço, prioridade em todos os tipos de transportes e comunicações, públicos ou privados, devendo as autoridades prestar-lhe todo o apoio ou auxílio necessários ao desempenho de suas funções; senhas de acesso aos sistemas, etc.). Eles são apresentados aos policiais mais antigos quando tomam conhecimento que possuem 4 horas semanais para a prática de atividade física e um programa institucional anual de capacitação em armamento e tiro com 400 tiros. Durante o trabalho, erros e acertos são cometidos, e experiências adquiridas. E com o tempo suas vidas se ajustam.

Aí, no dia 30 de junho, abri um e-mail institucional e li o conteúdo do Ofício nº XXX, de junho de 2010, emitido por um dos nossos parceiros na luta contra o crime e a violência. Imediatamente, lembrei da frase do meu amigo e de outras que já ouvi (“Você dá muito valor pra isso tudo!”, “Se eu você fosse, não estaria nem aí!”, “O negócio é prestar outro concurso!”, “A solução é esperar minha próxima encarnação!”).

O ofício dizia o seguinte: “Informo a V.Sª que o acesso dos membros dessa corporação às dependências da XXXXXXXX, portando arma de fogo, encontra-se disciplinado pelo art. 3º da Portaria N.000000000, de 12/2008, e Portaria n.00000, de 04/2005, cópia anexa. Assim, salvo na hipótese em que os policiais se encontrem em escolta de detentos ou testemunhas, na qual é permitido o acesso com arma de fogo aos prédios desta Seccional, o ingresso das pessoas autorizadas a portarem arma de fogo institucional nas instalações da XXXXXXXX será admitido, desde que a arma seja entregue, sob cautela, à Seção de Segurança, Vigilância e Transportes, localizada no edifício XXXXXXXX – Av. XXXXXXXX XXXX – X andar. Sendo assim, solicito que a presente orientação seja repassada para o conhecimento dos comandados dessa corporação. Certo da atenção de V.Sª, colho o ensejo para renovar protestos de estima e apreço.”

Agora eu pergunto: como manter o entusiasmo e acreditar que desempenhamos tarefas importantes para o país onde vivemos quando até nosso parceiro está contra nós? O que dizer aos 600 novos policiais federais cujos olhos ainda brilham? O que dizer aos 600.000 policiais civis e militares que ainda lutam? Aos 12.000 policiais federais que ainda tentam? Aos 13.000 policiais rodoviários federais que ainda acreditam? Aos 75.000 guardas civis que ainda vigiam? Aos 280.000 militares das Forças Armadas que ainda protegem? Aos milhares de agentes penitenciários que ainda procuram manter criminosos onde eles devem estar? E o que dizer àqueles que estão longe e ainda se orgulham de nós?

A verdade é que nenhum policial brasileiro vai a um órgão público por simples lazer. Todos estão lá porque estão trabalhando! Policiais portam armas porque criminosos portam armas, e esta é a segunda melhor forma de defesa contra eles (a primeira é a prevenção). E armas de fogo estão mais seguras nas mãos de policiais do que numa gaveta de uma seção de vigilância e transportes. Os cidadãos e nossos parceiros não devem temer nossas armas; eles devem se precaver contra as armas empunhadas por pessoas que não têm compromissos com a vida, a liberdade e a justiça!

Cada policial acredita que é “forte na linha avançada”. E ele o é, pois apesar das adversidades e do fogo amigo, ele reclama e insiste para que seu trabalho tenha as condições de excelência que ele deseja. Portanto, ninguém deve tornar o trabalho policial mais difícil e desalentador do que já é. Para isto, já existem aqueles que tramam na escuridão dos esconderijos. O que se espera, é que aqueles homens que têm o poder nas mãos usem este privilégio divino para melhorar a vida daqueles que lutam contra o crime e a violência todos os dias.

E se isso não ocorrer, talvez eu tenha que considerar a possibilidade do meu amigo ser um sábio! Mas na dúvida, em agosto teremos um treinamento de armamento e tiro em Uberlândia/MG.