quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Quem quiser que faça o meu trabalho! (Parte 1)

Como cidadão, que acredita na autodefesa, estou bastante incomodado. Como policial, que tem o dever de proteger as pessoas e o Estado, seus direitos e propriedades, eu estou impressionado, no pior sentido da palavra. E como instrutor de armamento e tiro, que tem a intenção de ensinar policiais a sobreviverem aos confrontos armados, eu estou pensativo.

A partir de agora, todas as instituições policiais brasileiras terão um desafio NUNCA imaginado. É um desafio fora do comum e que pode servir de base para um filme de ficção científica capaz de vencer todas as categorias do Prêmio Oscar. Se as polícias brasileiras conseguirem vencer esse desafio, todas as polícias e forças armadas no Planeta Terra, do Espaço Sideral e do Além nos enxergarão como exemplo único de eficiência e eficácia profissional.

Se tudo der certo, o FBI, o DEA, o U.S. Marshall, a Scotland Yard, o SAS, o U.S. Navy Seals, os Marines Corps, o GSG9, o Bundespolizei, o Mossad, a Mishteret Yisreal e a Royal Canadian Mounted Police, virão ao Brasil para aprender a extraordinária, nova e peculiar técnica de confronto armado com criminosos. Para isso, contamos com um país que agrega uma variedade de religiões que coexistem em completa tolerância e harmonia.

Nada de estandes de tiro, equipamentos de proteção individual, coletes balísticos, armas de fogo, pólvora, estampidos, comandos, treinamentos, repetições cansativas, sol ou chuva, sirenes, algemas. A nova técnica de reação policial precisará apenas de itens que não são controlados pela legislação: farofa, galinha preta, cachaça, vela, charuto, água benta, hóstia, terço, fita do Senhor do Bonfim, médiuns, oferendas, e muita, mas muita prece e oração.

De agora em diante, as escolas e centros de treinamento policial precisam desenvolver e aplicar uma técnica de tiro que permita ao policial REAGIR SOMENTE DEPOIS DE TER SIDO ALVEJADO. É isso mesmo: ele só pode usar sua arma depois de ter sido alvejado, gravemente ferido ou morto. E como pai (mas não mentor) dessa esplendorosa técnica de tiro e comportamento policial, vou chamá-la de “Técnica do Homem Morto” ou “Dead Man Drill”, para os estrangeiros.

Sete bilhões de habitantes no planeta Terra e ninguém pensou nisso antes?! A técnica é simples: o policial será alvejado por um tiro real. Se ele sobreviver, poderá reagir e atirar no alvo. Se ele morrer, poderá utilizar métodos de interação além-túmulo para reagir e atirar no alvo. O policial não pode entrar no túnel de luz (que conduz ao céu) e deve utilizar a pistola plasmo-fantasmagórica que surgirá em seu coldre. Se o policial morto não conseguir impedir a ação criminosa e prender o bandido, ele pode deixar que outro policial o faça, desde que sobreviva ao ferimento também. No final, dependendo da inabilidade dos policiais envolvidos na ocorrência, todos responderão processos disciplinares por trabalharem mal, intencionalmente ou não.

Quando os policiais, de países que possuem instituições públicas e privadas comprometidas com a segurança dos seus cidadãos e dos próprios policiais, assistirem a aplicação dessa nova metodologia, ela será imediatamente rebatizada de “Stupid Drill” ou “What a Fuck Drill”.

E então? Essa técnica faz sentido para você? Fique feliz se você respondeu “não”, pois ainda goza de alguma sanidade mental. E agora que eu recobrei minha capacidade de pensar com inteligência, deixarei que a “Técnica do Homem Morto” seja aplica apenas por quem acredita nela.

Excepcionalmente, quem crê na viabilidade desse comportamento antinatural nunca está na linha de frente quando é preciso ser forte para superar o estresse e a adversidade de um conflito com crimimosos e aquilo que eles representam (medo, violência e dor). Esperar que qualquer ser humano freie seu instinto natural de sobrevivência e aguarde ser alvejado para, só depois, reagir não tem explicação legítima, técnica ou moral.

Talvez você não saiba a origem da “Técnica do Homem Morto”. Por isso, transcrevo a argumentação contida num vídeo que circula na Internet:

“Se vocês querem uma resposta jurídica da coisa, para dizer que vocês não tenham nenhuma consequência, não atirem! Vocês só podem atirar a partir do momento que vocês forem alvejados. Vocês não têm uma arma para atacar. Vocês têm uma arma para se defender!”
“Não coloquem a vida de vocês em risco nem a vida de terceiros em risco para pegar um criminoso!”

De algum modo, parte da argumentação tem lógica, ou seja, não faça nada e você não sofrerá consequências. Na verdade, um convite para todos os policiais navegarem na Internet ou jogarem conversa fora nas delegacias e quartéis. Considerando o perigo do trabalho policial, os baixos salários e o desrespeito que enfrentam em razão da profissão, essa ideia é bastante interessante. Segundo, armas nas mãos de policiais profissionais e cidadãos de bem são, sim, instrumentos de defesa. Porém, a mesma arma de fogo só serve para ataque quando está nas mãos dos delinquentes. Por último, não se deve colocar a vida de terceiros (inocentes) em risco para prender criminosos, pois o risco não vale o benefício. Entretanto, como o policial não vai colocar sua vida em risco se for obrigado a ser alvejado primeiro antes de se defender?

Em 2007, escrevi o artigo denominado “O desconhecimento que mata...a legítima defesa!” Desse texto selecionei alguns tópicos importantes.

[...] muitas pessoas acreditam que o risco de vida não existe até que a ameaça ou agressão seja imediata. Essa ideia perigosa força muitos policiais a esperarem até que os criminosos saquem e apontem suas armas para eles ou para pessoas inocentes antes que esses policiais possam neutralizá-los. Pesquisas americanas demonstram que um criminoso é capaz de sacar uma arma escondida e atirar contra um policial antes que esse policial consiga simplesmente apertar o gatilho de sua arma já apontada para o criminoso (Firearms Response Time by Thomas A. Hontz).

[...] a ação é mais rápida que a reação.

Já em 2008, publiquei o texto “Eu vou atirar na perna dele!

Informações sobre confrontos armados indicam que um policial acerta um em cada seis tiros disparados contra o alvo. Isso produz cerca de 17% de aproveitamento, e se já parece ruim, espere até você analisar outro dado que demonstra que aproximadamente 50% dos tiroteios ocorrem em distâncias de até 1,70 m entre o policial e o suspeito. Outros 20% ocorrem em distâncias entre 2 e 3,40 metros. Agora, um homem com uma faca – e com o caminho livre – é capaz de correr 5 m em apenas 1.28 segundo. Assim, não importa quantos disparos sejam feitos, você vai errar a maioria deles, mesmo à queima roupa. Então, quão realista seria se muitas das pessoas que tiveram a SORTE de acertar o criminoso em ação tivessem que calmamente mirar e disparar contra uma das menores partes do corpo? E se essa área ainda tivesse grande chance de estar em movimento? Então, quanto tempo sobraria para a visada perfeita na perna, no braço ou no ombro? NENHUM.

De qualquer maneira, a prática nas academias envolve dois conceitos. O primeiro deles refere-se ao centro de massa, significando apontar a arma para que o projétil vá de encontro à área mais ampla do alvo (o tronco) e, obviamente em cujo local as chances de acerto são maiores. O segundo conceito diz respeito à possibilidade de se atingir órgãos internos localizados nessa área e que permitam uma maciça perda de sangue, levando à inconsciência e à incapacitação.

A intenção de incapacitar, em nada tem a ver com atirar para matar ou mirar para ferir, pois ambas são irrelevantes, pois sua ação de autodefesa está centralizada na percepção de ameaça grave e na capacidade do criminoso matar ou tentar matar você. Se a simples presença da sua arma detiver a intenção do delinquente, o trabalho está feito! Se apenas um tiro no centro de massa persuadir o atacante a desistir, está ótimo! Contudo, se forem precisos 10 tiros pelo corpo para impedir que um criminoso mate você, então...!

Eu não estou defendendo o uso da força letal como forma de punição para criminosos. O que eu estou dizendo, é que você é uma pessoa sensata, com um inalienável direito à vida e à liberdade e que não se envolve em questões alheias, ou seja, você vive pacificamente. E então, alguém o ataca, tenta feri-lo ou matá-lo sem nenhuma razão a não ser com o interesse de tomar aquilo que é seu. Você não está tentando matá-lo, apenas tentando fazê-lo parar. E isso não é errado, é certo! Você tem o direito de fazer o que for necessário para estar a salvo, voltar para casa e para sua família. Mas se você esperar até conseguir a pontaria perfeita e “não letal”, talvez seja tarde demais para você!

Agora, imagine que você (policial, juiz, promotor ou cidadão armado) tenha que aguardar o criminoso alvejá-lo para, a partir daí, adotar uma reação armada. Quão realista isso parece? Quem pode garantir que esse ferimento não será fatal? Será que esse novo conceito será utilizado pelos delinquentes? Porque não realizam seminários nos presídios para avisar aos assassinos, estupradores, traficantes, torturadores, pedófilos, falsários e ladrões que eles também só podem atirar depois de serem alvejados? Afinal, são esses criminosos que nunca hesitam em tirar a vida dos bons brasileiros.

A própria norma que trata da legítima defesa, garante a autodefesa na iminência ou atualidade de um ataque injusto. Ora, se a lei permite uma defesa no prenúncio do ataque, porque esperar o pior desfecho?

Já disse e repito: quem entende o trabalho policial e sabe como ele deve ser feito é a polícia. Seminários, palestras, simpósios e outras reuniões sobre assuntos pertinentes ao universo policial e suas técnicas deveriam ser compostas por especialistas da polícia, salvo raras exceções. Por essa razão, as organizações policiais precisam compreender a importância e urgência na produção de dados e informações técnicas que balizem o trabalho e o comportamento policial na dura realidade dessa tarefa. Policiais que arriscam suas vidas diariamente em benefício de pessoas desconhecidas não podem ser abandonados e colocados na linha de tiro dos que acreditam que eles devem aceitar, CALADOS E IMÓVEIS, o alvejamento, o ferimento ou a morte.

Quem acredita na “Técnica do Homem Morto” não tem permissão para “achar”, interferir, julgar, decidir ou avaliar o instinto natural de sobrevivência que todo ser humano possui. Quem acredita nessa técnica deveria, por respeito ao próprio pensamento, ser unir aos policiais do Rio de Janeiro e enfrentar os traficantes nos morros cariocas. Deveria se unir, lado a lado, aos policiais de São Paulo que lutam contra o PCC, por exemplo. Deveria perguntar aos policiais, juízes, promotores, políticos e cidadãos de países desenvolvidos o que é melhor para o mundo: um policial vivo ou um criminoso.

A vida é preciosa demais para ser entregue de modo tão fácil. E quem acredita que a vida do policial não vale nada que faça o nosso trabalho, principalmente no pior momento.

SE ESPERARMOS QUE CADA POLICIAL SEJA ALVEJADO PARA QUE ELE POSSA REAGIR AO CRIME, EM BREVE NÃO TEREMOS MAIS POLICIAIS NO BRASIL.