quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Siga os vivos!

Dois mil e treze (2013) foi um ano atípico. Por causa das circunstâncias e da animosidade que se instalaram no local de trabalho, eu havia decidido não realizar qualquer treinamento de tiro na delegacia onde estou lotado. Algumas pessoas, inclusive, me orientaram a não fazer nada sob o risco de boicote.

Meses depois, avaliei se minha decisão era a mais acertada e se minha vida deveria se pautar pela opinião alheia. Então, em outubro, iniciamos o treinamento de tiro com pistola; realizamos um treino com fuzil e abordagem policial em novembro; e um treinamento de tiro e autodefesa contra o crime para juízes federais em dezembro.

Minha mudança de atitude foi motivada por duas razões. Talvez, o treino pudesse fazer a diferença para alguém. Quem sabe, fosse um alívio para o estresse e a rotina dos participantes. Era importante pensar naqueles policiais que estavam “vivos” e esquecer aqueles que decidiram “morrer”, já que não se poderia fazer muita coisa pelos “mortos”. Essa foi a primeira razão. O segundo motivo era a possibilidade do treino me dar alguma alegria, alguma “vida”. Eu decidi que o resto de entusiasmo não “morreria” em razão das circunstâncias. Eu decidi não seguir os “mortos”, mas os “vivos”.

De fato, 30 policiais participaram do treino de pistola e 40 realizaram o treinamento de fuzil e abordagem policial.

A aula introdutória do treino de novembro (tiro com fuzil e abordagem) tratava da sobrevivência policial. Nessa aula, disse aos policiais algumas frases que havia aprendido ao longo do ano de 2013. São essas frases que compartilho neste artigo, na expectativa que possam fazer alguma diferença nas decisões dos leitores, assim como fez para mim.

“Fazer dá trabalho, e ninguém quer ter trabalho!” Aprendi essa frase com um subtenente (hoje capitão) do exército. E ele está certo. Fazer algo sempre dá trabalho, mesmo que seja para você mesmo. E se você quer bem feito, o trabalho é dobrado. Elaborar um treinamento e fazer com que ele aconteça dá muito trabalho. Contudo, tem policial que não quer ter trabalho algum, mas não perde a oportunidade quando quer reclamar. Reclama que não possui uma arma. Aí, a polícia compra a arma. Então, ele reclama da falta de munição. A polícia compra a munição. Daí, ele reclama da falta de instrutores. A polícia forma o instrutor. Em seguida, ele reclama da falta de local ou das condições do local de treino. A polícia consegue um estande. E o que o policial faz? Diz que está muito ocupado e não tem tempo para treinar. Na verdade, isso é uma desculpa esfarrapada para não ter trabalho. E quando eu digo “polícia”, me refiro aos policiais que fazem as coisas acontecerem. A instituição não faz coisa alguma; quem faz são os policiais.

Depois ouvi a segunda frase, agora de um policial, horas antes dele reagir a um assalto dentro de casa e matar um criminoso e ferir outro para salvar a própria vida, as vidas da irmã, do cunhado e dos sobrinhos. Ele disse: “Eu treino para ficar vivo!” Esse colega está sempre disposto a treinar, a ajudar e a ter trabalho. Depois do episódio, ele também percebeu, assim como eu, que é preciso estar ao lado dos “vivos”.

A terceira citação foi de um investigador de polícia. Ele comentou: “É preciso estar preparado, Humberto!” Momentos depois, ele sobreviveu a uma tentativa de roubo num posto de gasolina e matou os dois delinquentes. Apesar de toda a carência de recursos que esse policial enfrenta para exercer a profissão, ele está sempre disposto a treinar e a trabalhar com um vigor capaz de envergonhar muita gente.

A quarta frase foi uma demonstração de dissabor com o trabalho policial, de desmotivação e de falta de esperança. Mas, considerando a realidade das instituições e a forma como os governos tratam suas polícias, nada disso é novidade. As razões para essa frase abrangem desde a insatisfação financeira, a falta de perspectiva profissional e outros temas. Esses outros temas já são do conhecimento daqueles que ainda formam a NO, e por absoluta impertinência não cabem neste texto.

Assim, ao ser convidado para um curso de formação de operador de fuzil, o policial respondeu: “Eu não faço mais nada pra polícia!”

Confesso que fiquei constrangido com a resposta, pois fiz o convite com a melhor intenção. Considerei que o curso seria de grande valia para o colega, já que ele possuía uma arma longa. Além disso, um dos instrutores de tiro responsável pelo curso me incumbiu de procurar voluntários para o preenchimento das duas vagas destinadas à delegacia. Infelizmente, não me lembrei da triste situação que se vive no ambiente de trabalho.

Então, para minha surpresa aprendi a quinta frase: “Humberto, há pessoas que preferem descer enquanto outras escolhem subir!” Conclui, portanto, que era perda de tempo e de energia pensar ou me preocupar com aqueles que desejavam descer.

De qualquer modo, todo policial tem duas opções. A primeira é deixar que o desânimo, a desmotivação, a raiva e a pirraça o transformem num fantasma, que se arrasta pelos corredores de uma delegacia, na crença de que tal conduta algum dia chame a atenção dos governos e das próprias instituições para a necessidade de uma melhoria concreta na seleção, formação, remuneração, administração e aplicação dos recursos policiais. Esses policiais são aqueles que escolhem descer, que preferem sufocar a chama que os guia no trabalho policial.

A segunda alternativa é fazer algo que o motive e traga alguma alegria. Não me refiro a esta bobagem de “vestir ou suar a camisa”, mas ao desejo de realizar algo para si mesmo, pelos colegas ou por alguém. Faço referência ao desejo de ignorar a incompetência, a bajulação, o clientelismo, a maledicência e a inveja. Só isso já vai diminuir a carga negativa do ambiente de trabalho. Pode até parecer egoísmo ou ingratidão, mas é apenas o instinto de sobrevivência. A motivação está em você e não na instituição que você representa. Então, leia artigos e livros de interesse policial; participe de todos os cursos e palestras que puder; realize todos os treinamentos possíveis (presenciais ou EAD). Aproveite cada oportunidade que surgir e estude por conta própria. Avalie aquilo que fez de errado e procure melhorar seu comportamento tático. Forme e promova a coesão da equipe em que trabalha (quando eu trabalhava na DRE, o que me motivava era estar ao lado dos “antigões” e sentir a emoção das operações de repressão. Aqueles policiais não eram simples colegas, eram IRMÃOS. Infelizmente, muitos policiais hoje em dia não conseguem entender o que isso significa – e nem adianta explicar).

Quando faz isso, você está, na realidade, fazendo algo para si mesmo. Você sabe que a arma que usa é da polícia; que a munição é da polícia; o curso é da polícia; que o custo é pago pela polícia; que quem forma o instrutor é a polícia; que a viatura é da polícia, etc. Entretanto, caro amigo, a vida é sua. Ou seja, se você acha que sua conduta está boicotando a polícia, vale informar que você está boicotando a sua felicidade, a sua satisfação, a segurança e a própria vida.

Se você morrer porque está de pirraça, adivinhe o que vai acontecer: NADA! É isso mesmo, NADA! Os quartéis, as delegacias, os presídios abrirão as portas e funcionarão normalmente, inclusive no dia do seu enterro. Portanto, treina-se para ficar vivo. Os instrutores das academias também não estão trabalhando pra polícia. Eles estão fazendo e trabalhando por você.

Agora pense sobre seus verdadeiros inimigos. Digo isso, porque você pode imaginar que seu inimigo é aquele cara que tem opinião diferente da sua; aquele que prefere subir. Mas, seu verdadeiro inimigo não sofre de estresse; não se preocupa com as contas e com os problemas conjugais; não tem que cumprir horário; não precisa dar atenção aos filhos, etc. A única coisa com a qual o seu inimigo precisa se preocupar é estar preparado para acabar com você. E tenha certeza que nenhum criminoso vai fazer pirraça ou inventar alguma desculpa para evitar esse trabalho.