Como o policial não percebeu um inocente próximo durante um
tiroteio? Ele não enxergou as pessoas que estavam além do alvo? O policial não
viu o outro criminoso se aproximar? Por que ele não pode dizer quantos tiros
realizou? Ele não ouviu a ordem para parar de atirar? Ele deve estar mentindo
quando diz que não viu o suspeito largar a arma!
Essas são questões que podem surgir da análise do comportamento
dos policiais durante um confronto armado.
Certamente você conhece o fenômeno da VISÃO EM TÚNEL. Esse termo é utilizado para explicar porque os
policiais são capazes de narrar detalhadamente alguns aspectos de um incidente
enquanto estão cegos para outros elementos aparentemente óbvios. Porém esse
fenômeno ocasionalmente é visto com desconfiança por aparentar ser uma desculpa
para um comportamento inadequado. Assim, todos os policiais, comandantes e chefes,
juízes e promotores, jornalistas e o público em geral devem estar atentos ao significado
desse termo para dar a ele e ao policial a credibilidade que merecem.
O que é geralmente ignorado e precisa ser compreendido é porque
o fenômeno ocorre, como funciona e quão comum ele é não só no trabalho
policial, mas também em outras atividades como o esporte, por exemplo.
A fisiologia diz que em situações de estresse extremo, a íris
se abre, tornando a pupila maior. Ocorre que a dilatação da pupila piora a
acuidade visual e dificulta o foco em objetos próximos. À medida que isso ocorre, a pessoa experimenta o encurtamento do
campo visual de fora para dentro, ou seja, acontece a perda do campo visual
periférico.
Junto com o aumento do
nível geral de iluminamento causado pela dilatação da pupila acontece uma
estranha combinação na qual o policial enxerga coisas fora do comum dentro do
estreitamento do seu campo visual, apesar de permanecer “cego” em relação aos
acontecimentos à sua volta e que seriam vistos normalmente por meio da visão de
campo.
Em 1998, o FBI publicou um artigo que demonstrou que um policial
submetido ao estresse extremo experimentava, em média, 70% de diminuição do
campo visual, o que provocava o aumento de 440% no seu tempo de resposta. Mas o
mais importante, segundo os pesquisadores, era a incapacidade do policial em
descrever precisamente o movimento de um suspeito que segurava uma arma
apontada para baixo, já que arma estava fora do seu campo visual.
Um campo visual tão pequeno elimina a capacidade do policial em
ver um inocente próximo ou outro perigo potencial, principalmente se for
considerado o tempo disponível para reagir com base no Ciclo OODA (Observação,
Organização, Decisão e Ação).
Uma vez que a maioria das ameaças é detectada pela visão, a
tremenda redução visual restringe severamente a capacidade do cérebro para
receber e processar informações vitais. Ou seja, o recurso sensorial primário
do qual o cérebro depende durante um confronto é a visão, e no entanto, se o
sistema visual alimentar o cérebro com informações inconsistentes durante o
combate, a percepção da ameaça e o processamento das informações estarão
comprometidas.
João Cavalim de Lima, na obra Atividade Policial e o Confronto Armado, cita ainda a Agnosia
Visual:
“Refere-se à incapacidade de ver nos
objetos corretamente suas formas, cor e espaço. Nos primeiros casos, o policial
se mostra incapacitado para identificar o objeto ou a forma deste, em virtude
de se encontrar alterada a integração das sensações elementares. A sensação
óptica, nesses casos, constitui-se muito mais de contornos, superfícies e
cores, luzes e sombras, do que na individualização do objeto em si. Com
frequência não se destacam bem entre si, carecem de definição clara e patente e
de relação nítida com o que se acha próximo a eles no espaço óptico.” (pag.
86).
Em função da complexidade do ser humano, essas alterações não
podem ser explicadas somente através do aspecto físico. E é por isso que o
fenômeno da visão em túnel também está relacionado com a PERCEPÇÃO e o NÍVEL DE
ATENÇÃO. Sabe-se hoje que a visão em túnel não ocorre só em situações
estressantes, mas também em situações onde o indivíduo foca sua atenção em
determinado aspecto do ambiente que o cerca enquanto ignora outros. O nome
disso é atenção seletiva.
O indivíduo pode, é claro, ter uma atenção difusa através de
todos os sentidos ou mesmo dentro de um mesmo sentido, por exemplo, observando
um ambiente enquanto fala ou escuta pelo rádio HT. Mas assim que a atenção do
policial é direcionada para um acontecimento que exige a concentração total de
um sentido, ele não consegue processar simultaneamente outras informações do
mesmo sentido ou de outro sentido. Isso quer dizer que ele vai processar essas
informações em sequência, mudando da visão para a audição e retornando para a
visão, por exemplo. Mas nunca os dois sentidos ao mesmo tempo.
Contudo, policiais tendem a acreditar que podem captar e
processar as informações de todos os sentidos quando submetidos à atenção
seletiva. E isso acontece porque eles tendem a preencher os vazios da memória com
suposições sobre a ocorrência. Com o tempo, e baseado no contexto e na mudança
daquilo que o policial percebe, ele conecta os fragmentos de memória e preenche
as partes faltantes criando uma narrativa da ocorrência que não tem relação verdadeira
com o incidente.
Por quê? Porque muito da memória resulta do nível de atenção da
pessoa. A todo o momento os sentidos enviam informações ao cérebro. Mas o
indivíduo somente presta atenção a uma pequena porcentagem daquilo que o
cérebro recebe. Se essa pessoa não presta atenção em algo, então essa
informação é perdida na memória. Uma intensa atenção em um aspecto particular
de um incidente pode resultar numa vívida memória em alguma área, mas por
definição esse foco de atenção causa a redução no nível de percepção e de
memória em todas as outras áreas.
Por exemplo, se algo ocorreu no sentido da visão enquanto a
atenção do policial estava voltada para outra coisa, mesmo que por uma fração
de segundo, o policial será incapaz de se lembrar do que ocorreu durante aquele
período e pode até mesmo não acreditar que alguma coisa aconteceu enquanto sua
atenção estava canalizada para outra situação. Então, o policial preenche essa
lacuna com informações que ele acredita serem reais, apesar das evidências
demonstrarem o contrário. Ele faz isso porque é levado a crer que não pode
falhar; que deve ter uma resposta para todas as perguntas e que não pode dizer
“Eu não sei!” ou “Eu não me lembro!” Infelizmente, com base nessas informações
conflitantes, aqueles que investigam e avaliam as ações policiais tendem a
imaginar que o policial está mentindo.
Outro aspecto interessante, mas pouco conhecido é que os
pensamentos podem provocar o mesmo efeito seletivo ou “em túnel” que um evento
crítico. Assim, um policial que está recordando algo quando confrontado por uma
ameaça imediata e direta à sua vida pode desenvolver uma espécie de “atenção em
túnel” voltada para os próprios pensamentos e permanecer “cego” a qualquer
coisa que esteja ocorrendo fora de sua mente. Um policial ferido sem gravidade,
mas que acredita que vai morrer, pode entrar em pânico em razão do pensamento
infundado e perder sua capacidade de ver, ouvir e sentir. Ou um policial que
está desesperadamente tentando sanar uma pane no armamento no meio de um
conflito também pode ser vítima da “atenção em túnel”, permanecendo tão compenetrado
na solução do problema que não consegue perceber a ação do suspeito que ocorre
simultaneamente. Ele é incapaz de ver aquilo que não é objeto do seu foco de
atenção no momento.
Apesar de os policiais utilizarem o termo “visão em túnel” nas
ocorrências com altos níveis de estresse, medo e raiva, a realidade é que todos
os seres humanos experimentam esse fenômeno em algum grau todo o tempo. Raiva e
medo, obviamente, geram esse acontecimento, mas a atenção seletiva normalmente
ocorre em qualquer grau emocional. Tudo o que é preciso é que o indivíduo se
concentre em algo para que o afunilamento se inicie.
Cegueira não intencional
é o nome dado ao processo de rejeição de alguma informação que chega de um
sentido quando o foco em outra coisa é mais importante naquele momento em
particular.
Tanto a audição quanto a visão em túnel integram o modo como os
seres humanos operam para serem capazes de prestar atenção num ambiente
inundado de estímulos e na própria mente que se preocupa com seus próprios
pensamentos. Sem uma capacidade para se concentrar e focar em algo em
particular, as pessoas seriam sobrecarregadas com informações sem propósito. Portanto,
quanto maior o nível de estresse, maior a necessidade de concentração para se
perceber informações importantes.
À medida que o estresse é baixo, você pode ter um foco flexível
através de muitos sentidos e pensamentos. Isso é o que pode ser chamado de multitarefa,
principalmente durante atividades rotineiras. Uma vez que você começa a apontar
sua atenção para algo, rapidamente perde a capacidade de adquirir e processar
qualquer outra coisa que não esteja no seu foco de atenção, até que você mude
seu foco. Por exemplo, um jogador de tênis focado em rebater a bola pode
demonstrar um surpreendente grau de concentração, que inclui a audição e a
visão em túnel, e uma significante cegueira não intencional a qualquer coisa
que esteja fora do seu plano de atenção.
No futebol, uma bola pode alcançar uma velocidade média de
quase 100 km/h,
podendo atingir 126 km/h,
e se chutada da linha da meia lua pode alcançar o gol em 72 centésimos de
segundo. Um goleiro que esteja concentrado na bola, sob estresse ou apenas
durante um treino, está normalmente com sua atenção tão afunilada que é incapaz
de relatar sobre qualquer coisa que esteja dentro do seu campo visual durante os
0,72 s. Normalmente isso não é importante para o goleiro e ninguém fica
preocupado com isso, mas quando o mesmo fenômeno ocorre com um policial durante
um conflito isso se transforma em algo da maior importância.
O processo de seleção e atenção é compreendido como sendo um
procedimento cognitivo ou cerebral, mas não um processo sensorial. Por exemplo,
a ciência informa que o olho parece funcionar continuamente enviando todos os
dados para o cérebro, o cérebro seleciona aquilo que é necessário e ativamente
rejeita ou suprime o restante dos dados (dando a impressão de uma visão em
túnel). Mas é o cérebro que está trabalhando ao fazer isso – não o olho.
Apesar do nome “visão em túnel” ser bastante explicativo do
ponto de vista fisiológico, ele não engloba tudo que ocorre com o policial numa
situação de confronto. Assim, especialistas se referem a esse foco como ATENÇÃO SELETIVA (ou filtro mental). O
mecanismo de rejeição de dados é denominado “cegueira não intencional”.
Você pode notar que a atenção seletiva não faz nenhuma
referência a qualquer sentido como a visão ou a audição, e a razão é que a
atenção pode ser direcionada para qualquer lugar do pensamento, do corpo ou do
sentido de um indivíduo. Sob foco intenso, o policial é capaz de selecionar uma
informação em um sentido ou em um pensamento, mas está cego às informações de
outros sentidos ou pensamentos.
Portanto, o processo cerebral de concentração ou afunilamento
(atenção seletiva e cegueira não intencional) é real para todas as pessoas, sob
muitas condições, mas especialmente para os policiais envolvidos em situações
extremas, como um tiroteio, uma luta ou uma perseguição. Daí a importância da
paciência e do trabalho em equipe, pois um policial pode perceber aquilo que o
colega não consegue “enxergar”.