quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Siga os vivos!

Dois mil e treze (2013) foi um ano atípico. Por causa das circunstâncias e da animosidade que se instalaram no local de trabalho, eu havia decidido não realizar qualquer treinamento de tiro na delegacia onde estou lotado. Algumas pessoas, inclusive, me orientaram a não fazer nada sob o risco de boicote.

Meses depois, avaliei se minha decisão era a mais acertada e se minha vida deveria se pautar pela opinião alheia. Então, em outubro, iniciamos o treinamento de tiro com pistola; realizamos um treino com fuzil e abordagem policial em novembro; e um treinamento de tiro e autodefesa contra o crime para juízes federais em dezembro.

Minha mudança de atitude foi motivada por duas razões. Talvez, o treino pudesse fazer a diferença para alguém. Quem sabe, fosse um alívio para o estresse e a rotina dos participantes. Era importante pensar naqueles policiais que estavam “vivos” e esquecer aqueles que decidiram “morrer”, já que não se poderia fazer muita coisa pelos “mortos”. Essa foi a primeira razão. O segundo motivo era a possibilidade do treino me dar alguma alegria, alguma “vida”. Eu decidi que o resto de entusiasmo não “morreria” em razão das circunstâncias. Eu decidi não seguir os “mortos”, mas os “vivos”.

De fato, 30 policiais participaram do treino de pistola e 40 realizaram o treinamento de fuzil e abordagem policial.

A aula introdutória do treino de novembro (tiro com fuzil e abordagem) tratava da sobrevivência policial. Nessa aula, disse aos policiais algumas frases que havia aprendido ao longo do ano de 2013. São essas frases que compartilho neste artigo, na expectativa que possam fazer alguma diferença nas decisões dos leitores, assim como fez para mim.

“Fazer dá trabalho, e ninguém quer ter trabalho!” Aprendi essa frase com um subtenente (hoje capitão) do exército. E ele está certo. Fazer algo sempre dá trabalho, mesmo que seja para você mesmo. E se você quer bem feito, o trabalho é dobrado. Elaborar um treinamento e fazer com que ele aconteça dá muito trabalho. Contudo, tem policial que não quer ter trabalho algum, mas não perde a oportunidade quando quer reclamar. Reclama que não possui uma arma. Aí, a polícia compra a arma. Então, ele reclama da falta de munição. A polícia compra a munição. Daí, ele reclama da falta de instrutores. A polícia forma o instrutor. Em seguida, ele reclama da falta de local ou das condições do local de treino. A polícia consegue um estande. E o que o policial faz? Diz que está muito ocupado e não tem tempo para treinar. Na verdade, isso é uma desculpa esfarrapada para não ter trabalho. E quando eu digo “polícia”, me refiro aos policiais que fazem as coisas acontecerem. A instituição não faz coisa alguma; quem faz são os policiais.

Depois ouvi a segunda frase, agora de um policial, horas antes dele reagir a um assalto dentro de casa e matar um criminoso e ferir outro para salvar a própria vida, as vidas da irmã, do cunhado e dos sobrinhos. Ele disse: “Eu treino para ficar vivo!” Esse colega está sempre disposto a treinar, a ajudar e a ter trabalho. Depois do episódio, ele também percebeu, assim como eu, que é preciso estar ao lado dos “vivos”.

A terceira citação foi de um investigador de polícia. Ele comentou: “É preciso estar preparado, Humberto!” Momentos depois, ele sobreviveu a uma tentativa de roubo num posto de gasolina e matou os dois delinquentes. Apesar de toda a carência de recursos que esse policial enfrenta para exercer a profissão, ele está sempre disposto a treinar e a trabalhar com um vigor capaz de envergonhar muita gente.

A quarta frase foi uma demonstração de dissabor com o trabalho policial, de desmotivação e de falta de esperança. Mas, considerando a realidade das instituições e a forma como os governos tratam suas polícias, nada disso é novidade. As razões para essa frase abrangem desde a insatisfação financeira, a falta de perspectiva profissional e outros temas. Esses outros temas já são do conhecimento daqueles que ainda formam a NO, e por absoluta impertinência não cabem neste texto.

Assim, ao ser convidado para um curso de formação de operador de fuzil, o policial respondeu: “Eu não faço mais nada pra polícia!”

Confesso que fiquei constrangido com a resposta, pois fiz o convite com a melhor intenção. Considerei que o curso seria de grande valia para o colega, já que ele possuía uma arma longa. Além disso, um dos instrutores de tiro responsável pelo curso me incumbiu de procurar voluntários para o preenchimento das duas vagas destinadas à delegacia. Infelizmente, não me lembrei da triste situação que se vive no ambiente de trabalho.

Então, para minha surpresa aprendi a quinta frase: “Humberto, há pessoas que preferem descer enquanto outras escolhem subir!” Conclui, portanto, que era perda de tempo e de energia pensar ou me preocupar com aqueles que desejavam descer.

De qualquer modo, todo policial tem duas opções. A primeira é deixar que o desânimo, a desmotivação, a raiva e a pirraça o transformem num fantasma, que se arrasta pelos corredores de uma delegacia, na crença de que tal conduta algum dia chame a atenção dos governos e das próprias instituições para a necessidade de uma melhoria concreta na seleção, formação, remuneração, administração e aplicação dos recursos policiais. Esses policiais são aqueles que escolhem descer, que preferem sufocar a chama que os guia no trabalho policial.

A segunda alternativa é fazer algo que o motive e traga alguma alegria. Não me refiro a esta bobagem de “vestir ou suar a camisa”, mas ao desejo de realizar algo para si mesmo, pelos colegas ou por alguém. Faço referência ao desejo de ignorar a incompetência, a bajulação, o clientelismo, a maledicência e a inveja. Só isso já vai diminuir a carga negativa do ambiente de trabalho. Pode até parecer egoísmo ou ingratidão, mas é apenas o instinto de sobrevivência. A motivação está em você e não na instituição que você representa. Então, leia artigos e livros de interesse policial; participe de todos os cursos e palestras que puder; realize todos os treinamentos possíveis (presenciais ou EAD). Aproveite cada oportunidade que surgir e estude por conta própria. Avalie aquilo que fez de errado e procure melhorar seu comportamento tático. Forme e promova a coesão da equipe em que trabalha (quando eu trabalhava na DRE, o que me motivava era estar ao lado dos “antigões” e sentir a emoção das operações de repressão. Aqueles policiais não eram simples colegas, eram IRMÃOS. Infelizmente, muitos policiais hoje em dia não conseguem entender o que isso significa – e nem adianta explicar).

Quando faz isso, você está, na realidade, fazendo algo para si mesmo. Você sabe que a arma que usa é da polícia; que a munição é da polícia; o curso é da polícia; que o custo é pago pela polícia; que quem forma o instrutor é a polícia; que a viatura é da polícia, etc. Entretanto, caro amigo, a vida é sua. Ou seja, se você acha que sua conduta está boicotando a polícia, vale informar que você está boicotando a sua felicidade, a sua satisfação, a segurança e a própria vida.

Se você morrer porque está de pirraça, adivinhe o que vai acontecer: NADA! É isso mesmo, NADA! Os quartéis, as delegacias, os presídios abrirão as portas e funcionarão normalmente, inclusive no dia do seu enterro. Portanto, treina-se para ficar vivo. Os instrutores das academias também não estão trabalhando pra polícia. Eles estão fazendo e trabalhando por você.

Agora pense sobre seus verdadeiros inimigos. Digo isso, porque você pode imaginar que seu inimigo é aquele cara que tem opinião diferente da sua; aquele que prefere subir. Mas, seu verdadeiro inimigo não sofre de estresse; não se preocupa com as contas e com os problemas conjugais; não tem que cumprir horário; não precisa dar atenção aos filhos, etc. A única coisa com a qual o seu inimigo precisa se preocupar é estar preparado para acabar com você. E tenha certeza que nenhum criminoso vai fazer pirraça ou inventar alguma desculpa para evitar esse trabalho.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O dilema da sobrevivência

Matar ou morrer? A resposta para essa pergunta parece óbvia, principalmente quando NÃO é preciso decidir e agir REALMENTE.

Por isso, a maioria das pessoas, inclusive policiais, considera que na luta pela sobrevivência matar alguém seja simples demais. Mas ao avaliar a situação de um amigo próximo, que precisou matar para não morrer, ficou claro que essa decisão não foi das mais fáceis.

De fato, para quem vive no submundo criminoso, matar é algo banal, pois se trata apenas de um capricho momentâneo e de um pouco mais de pressão no gatilho da arma. E apesar de integrarem a espécie humana, criminosos talvez façam parte de um grupo separado, quase uma “subespécie”.

Mas é preciso tratar do ser humano normal. Para ele, desde cedo e a todo instante, vozes internas dizem o que fazer ou não fazer, o que é certo ou errado. Elas o guiam em direção à convivência saudável e à paz de espírito. Entretanto, existem circunstâncias nas quais não há opções. Nelas, o homem normal precisa sobrepujar sua resistência natural em matar alguém da própria espécie para ser capaz de existir mais um dia. As rotas de escape simplesmente desaparecem quando um delinquente aponta uma arma para você ou para alguém que ama.

Muitas religiões, se não todas, propõem que homens e mulheres vivam pacificamente. Mesmo assim, elas conseguem homenagear seus heróis, seus guerreiros e suas vitórias. No mundo caótico em que viveram, esses heróis existiram como protetores divinos, como agentes do bem sobre o mal. Certamente, eles não estavam comprometidos com o louvor, a cura, a alegria e o amor, mas possuíam lanças, espadas e adagas para seguir adiante.

Apesar de os Dez Mandamentos proibirem o assassinato, não se proibiu a autodefesa ou o cumprimento do dever, principalmente na salvaguarda de vidas inocentes. A ideia do perdão e o mandamento “de oferecer a outra face”, conforme narram os evangelhos de Mateus e Lucas, possuem caráter moral PESSOAL. Porém, quando alguém age em nome de outra pessoa, não existe autoridade moral para perdoar em seu nome ou para permitir que o mal se sobressaia em razão da tolerância. A resistência pacífica não é viável quando alguém está tentando matar um policial.

Como a polícia representa todos os cidadãos, seu distintivo, arma, corpo e espírito estão a serviço deles. Permitir uma agressão ao policial é permitir uma agressão ao cidadão. Para honrar seu compromisso e continuar seu trabalho, o policial precisa e DEVE sobreviver. Quando ele se defende, ele também defende milhares de pessoas inocentes.

No Livro dos Espíritos de Allan Kardec, no capítulo VI - Da Lei de Destruição, a questão do assassinato é tratada da seguinte forma:

"É sempre do mesmo grau a culpabilidade em todos os casos de assassínio? 'Já o temos dito: Deus é justo, julga mais pela intenção do que pelo fato."
"Em caso de legítima defesa, escusa Deus o assassínio? 'Só a necessidade o pode escusar. Mas, desde que o agredido possa preservar sua vida, sem atentar contra a de seu agressor, deve fazê-lo."
"Tem o homem culpa dos assassínios que pratica durante a guerra? 'Não, quando constrangido pela força; mas é culpado das crueldades que cometa, sendo-lhe também levado em conta o sentimento de humanidade com que proceda.'"

Aqui, a questão crucial é a intenção assassina e do abuso da capacidade de matar. Por outro lado, se o policial está agindo apropriadamente dentro dos limites estabelecidos, inclusive pelas leis humanas, então ele está realizando um trabalho nobre e necessário para preservar aquilo que é mais importante no momento: sua própria vida e a vida de terceiros. A lei divina e a do homem não impedem a resistência à agressão injusta, muito menos proíbe que se lute contra o mal.

Infelizmente, apesar de as guerras e a morte serem temas comuns nas escrituras, não existe uma prescrição específica para lidar com a morte provocada por nossas próprias mãos em termos do nosso estado emocional, mental, físico e espiritual. Pode haver remorso, ódio, culpa, alegria ou um vazio interior onde se espera algum sentimento. Todas essas reações são normais e aceitáveis, e acredita-se que podem ser assimiladas com o passar do tempo.

As reações ao ato de matar alguém não precisam ser completamente formadas e compreendidas antes que o gatilho seja pressionado, já que, de qualquer modo, as pessoas normais sentem alguma tristeza em relação à morte alheia. Contudo, na luta pela sobrevivência contra um criminoso, estar agradecido porque o sujeito morreu e você ainda está vivo não é moralmente errado.

Como a morte de um ser humano por outro é impensável para a maioria das pessoas, e para muitos policiais também, um policial que é obrigado a matar carrega o fardo dessa ansiedade coletiva. Assim, não há como imaginar que a morte, mesmo de um bandido, vá agradar a todos.

O sentimento por ter causado a morte de outra pessoa não é algo que se extingue com o arquivamento do processo criminal. Você sente o que sente. E faz o que tem que fazer. Portanto, respire fundo, tire uma licença e tente dormir um pouco. SE VOCÊ SOBREVIVEU, É PORQUE FEZ A COISA CERTA.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A arma que mata está com o criminoso. (Parte 4)

Finalmente, essa é a quarta parte do artigo "A arma que mata está com o criminoso.", uma contraposição à ideologia desarmamentista que insiste em relacionar a posse e o porte de armas de fogo legalizadas com os índices de mortes violentas ocorridas no país.

Certamente, daqui a alguns anos, o leitor terá a oportunidade de ler o texto "A arma que mata AINDA está com o criminoso, apesar do Estatuto do Desarmamento."

Considerando que para o governo tudo é uma questão de dinheiro e interesse próprio, não é difícil imaginar o porquê da política de desarmamento ser utilizada como proposta para "diminuir" a violência nacional. Afinal, é mais fácil e barato desarmar o cidadão com a ardilosa afirmativa de que menos armas produzem menos violência. Pior ainda, é a sugestão de que a violência se deve exclusivamente àquelas pessoas que desejam ter armas para garantir o direito à autodefesa quando se sabe que o problema está na falta de políticas públicas sérias, profissionais e duradouras de prevenção e repressão ao crime profissional. Ocorre que políticas assim exigem comprometimento, conhecimento e dinheiro. Governos indiferentes às reais necessidades sociais, mas comprometidos com ideologias falidas, enganam, digo, atuam na segurança pública sempre pensando no curto prazo. Por essa razão, para confundir a sociedade é prático, barato e rápido investir em propaganda enganosa e substituir o direito à autodefesa por um serviço policial desvalorizado, desmotivado, arcaico e sem futuro.

Essa propaganda ocorre quando um governo compra viaturas OSTENSIVAS para a Polícia Civil utilizar em INVESTIGAÇÕES SIGILOSAS; quando forma Agentes Penitenciários em cursos que duram apenas 12 dias; quando abre concurso para 2.350 vagas para Soldado PM, mas mantém o salário em R$ 2.200,00; quando compra sistemas de comunicação mirabolantes que são mantidos inoperantes enquanto os policiais utilizam seus telefones celulares. Quer dizer, equipamentos errados, treinamentos patéticos e salários incompatíveis com a nobreza e o perigo da profissão.

Nenhum governo se esforça para reformular a legislação; para modificar o sistema prisional; para investir no aprimoramento das polícias e do modelo de investigação; para entender que o criminoso profissional (maior ou menor de idade) NÃO é o resultado da exclusão social e NÃO merece tratamento benevolente; e para compreender que o objetivo dos órgãos de direitos humanos é proteger a vida e o bem estar dos cidadãos e vítimas honestas que financiam a existência do próprio governo com o trabalho, as privações e os sofrimentos diários. Infelizmente, a considerar a passividade e tolerância exageradas da população em relação à incompetência estatal e à implantação de uma republiqueta comunista (não menos interessada no dinheiro público), a solução para amenizar a violência JAMAIS virá.

Entretanto, o propósito dessa quarta parte do artigo é desconstruir o argumento de que no Brasil as armas de fogo são as únicas ou maiores responsáveis por mortes de modo geral, conforme afirma o estudo denominado Mapa da Violência 2013 – Mortes Matadas por Armas de Fogo1 (uma compilação sobre a mortalidade por armas de fogo entre os anos de 1980 e 2010).


O estudo também compara as mortes no Brasil com alguns conflitos internacionais (assunto a ser tratado na quinta e última parte), o que favorece outra comparação, ou seja, com aquelas fatalidades ocorridas no trânsito brasileiro. A tabela 2.1 do Mapa da Violência relaciona o número de vítimas letais por armas de fogo entre os anos de 1980 e 2010. Nela constam as descrições “Acidente”, “Suicídio”, “Homicídio”, “Indeterminado” e “Total”. Essa tabela é agora comparada com as mortes produzidas em acidentes de trânsito no mesmo período (1980/2010).

Ano

Vítimas letais por armas de fogo1
Vítimas letais  no trânsito2
Acidente
Suicídio
Homicídio
Indeterm.
Total
Total
1980
386
660
6.104
1.560
8.710
19.851
1981
448
731
6.452
1.689
9.230
19.161
1982
467
657
6.313
1.608
9.045
20.755
1983
566
789
6.413
3.062
10.830
20.077
1984
515
766
7.947
3.350
12.578
21.942
1985
575
781
8.349
3.783
13.488
24.298
1986
669
788
8.803
4.609
14.869
29.574
1987
677
951
10.717
3.747
16.092
27.611
1988
586
827
10.735
4.978
17.126
27.942
1989
605
850
13.480
5.505
20.440
28.839
1990
658
989
16.588
2.379
20.614
28.470
1991
1.140
1.037
15.759
3.614
21.550
27.886
1992
859
1.085
14.785
4.357
21.086
26.711
1993
456
1.169
17.002
4.115
22.742
27.289
1994
353
1.321
18.889
3.755
24.318
29.041
1995
534
1.555
22.306
2.369
26.764
32.532
1996
270
1.543
22.976
1.692
26.481
35.545
1997
250
1.539
24.445
1.519
27.753
35.756
1998
371
1.407
25.674
2.759
30.211
31.026
1999
888
1.260
26.902
2.148
31.198
30.118
2000
329
1.330
30.865
2.461
34.985
29.645
2001
336
1.408
33.401
1.977
37.122
31.031
2002
318
1.366
34.160
2.135
37.979
33.288
2003
283
1.330
36.115
1.597
39.325
33.620
2004
201
1.247
34.187
1.478
37.113
35.674
2005
244
1.226
33.419
1.171
36.060
36.611
2006
404
1.138
34.147
897
37.360
37.249
2007
320
1.141
35.676
1.232
36.840
38.419
2008
353
1.123
36.624
1.506
38.658
39.211
2009
351
1.069
36.624
1.633
39.677
38.469
2010
352
969
36.792
779
38.892
43.908
Total
14.764
34.052
670.946
79.464
799.226
941.549

Para alguém muito ingênuo, a redução do número de mortos em acidentes de trânsito passaria pela redução do número de veículos motorizados em circulação. No entanto, sabe-se que esses acidentes são provocados pela imprudência dos motoristas e pela precariedade das estradas e outras vias públicas. Os automóveis não são os responsáveis pela mortalidade de quase um milhão de pessoas, como também as armas não são as culpadas por quase oitocentas mil mortes. O elemento decisivo em todas as mortes por causas externas é o SER HUMANO. É a intenção hostil, a impunidade, a ganância e a imprudência os verdadeiros culpados por essas mortes. A solução para isso passaria pela extinção da raça humana, o que é um devaneio, já que se quer preservar vidas.

Se as armas matam pessoas, então os carros fazem motoristas dirigirem bêbados.

As armas de fogo, ao mesmo tempo, não podem ser responsabilizadas pelo autoextermínio de 34.052 brasileiros. Na verdade, alguém comprometido com a própria morte é capaz de se matar usando qualquer meio disponível. O Estatuto do Desarmamento não foi capaz de reduzir o número de suicídios de modo geral. Mesmo que os suicidas tivessem dificuldade de acesso às armas de fogo, o fato é que o número de suicídios aumentou desde o lançamento do estatuto em 2003. A média de suicídios de 1980 a 2002 foi de 1.078 mortes, enquanto a média de 2003 a 2010 foi de 1.155. Em todo o período (1980 a 2010) a média foi de 1.098 casos.

Ano
Suicídios
Por armas de fogo1
Total (incluindo outros meios)3
1980
660
3.896
1981
731
4.061
1982
657
3.917
1983
789
4.586
1984
766
4.433
1985
781
4.255
1986
788
4.312
1987
951
4.701
1988
827
4.492
1989
850
4.491
1990
989
4.845
1991
1.037
5.186
1992
1.085
5.268
1993
1.169
5.555
1994
1.321
5.932
1995
1.555
6.594
1996
1.543
6.743
1997
1.539
6.923
1998
1.407
6.989
1999
1.260
6.530
2000
1.330
6.780
2001
1.408
7.738
2002
1.366
7.726
2003
1.330
7.861
2004
1.247
8.017
2005
1.226
8.550
2006
1.138
8.639
2007
1.141
8.868
2008
1.123
9.328
2009
1.069
9.374
2010
969
9.448
Total
34.052
196.038

Do mesmo modo, as armas não podem ser consideradas vilãs nos casos de acidentes e situações indeterminadas. Só no ano de 2010, os acidentes com armas de fogo mataram 352 pessoas. No mesmo ano, 10.426 pessoas morreram em razão de quedas4 ou tombos. Alguém muito esperto poderia sugerir o recolhimento de todas as escadas, por exemplo.

Assim, restou o homicídio intencional, a verdadeira preocupação nacional, que totalizou 670.946 mortos. O Mapa da Violência faz crer que a maior parte dessas fatalidades foi provocada por uma "cultura da violência" na solução de conflitos interpessoais. O estudo afirma:

Cultura da Violência. Contrariando a visão amplamente difundida, principalmente nos meios ligados à Segurança Pública, de que a violência homicida do país se encontra imediatamente relacionada às estruturas do crime, e mais especificamente à droga, diversas evidências, muitas delas bem recentes, parecem apontar o contrário:

  Em novembro de 2012 o Conselho Nacional do Ministério Público divulgou uma pesquisa que fundamentou sua campanha Conte até 10. Essa é a Atitude. O estudo foi elaborado a partir de inquéritos policiais referentes a homicídios acontecidos em 2011 e 2012, em 16 Unidades da Federação, verificando a proporção de assassinatos acontecidos por motivos fúteis e/ou por impulso. Foram incluídos nessa categoria brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito, etc. Impulso e motivos fúteis representaram 100% do total de homicídios, no Acre 83%, em São Paulo 82%. Os estados com menores índices foram Rio Grande do Sul: 43% e Rio de Janeiro: 27%. (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013, p. 53-54).

É inacreditável que em 16 estados brasileiros TODOS os homicídios ocorridos em dois anos aconteceram por impulso e motivos fúteis. Nenhum homicídio encomendado, nenhum latrocínio, nada, nadinha... Quer dizer que no Acre apenas 17% dos assassinatos estavam relacionados ao crime profissional. Já no Estado de São Paulo, berço do PCC, foram apenas 18% de mortes relacionadas ao banditismo.

Impunidade. Um terceiro fator de peso são os elevados níveis de impunidade vigentes, que atuam como estímulo para a resolução de conflitos pela via violenta, diante da escassa probabilidade de punição. E também temos fortes evidências sobre o tema.

Em meados de 2012 foi divulgado o Relatório Nacional da Execução da Meta 2 da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública - ENASP, estratégia estabelecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça. A Meta 2 intitulada A Impunidade como Alvo, determinava a conclusão dos inquéritos policiais por homicídio doloso instaurados até 31/12/2007, isto é, inquéritos que tinham no mínimo quatro anos de antiguidade e ainda não estavam concluídos. Para atingir essa meta, foram criados grupos-tarefa integrados, em cada unidade da federação, por representantes dos Ministérios Públicos, Polícia Civil e Poder Judiciário. Uma primeira prospecção em cada UF permitiu identificar 134.944 inquéritos por homicídios dolosos instaurados até 31/12/2007 ainda não finalizados. Depois de um ano de acionar, foi possível oferecer denúncia à justiça de um total de 8.287 inquéritos, o que representa 6,1% do número inicial de inquéritos. (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013, p. 54).

Novamente se verifica uma conclusão inadmissível, porém capaz de induzir ao erro o leitor desatento. Veja bem, uma força tarefa determinou a conclusão de inquéritos instaurados até 2007. Então, somaram-se quase 135.000 inquéritos por homicídios intencionais. Milagrosamente, tal força tarefa conseguiu elucidar 8.267 crimes em apenas um ano, o que representou um desempenho incrível de 6,1%. E é com base nesse estonteante percentual (6,1%) que o Mapa da Violência alega se resumirem os crimes cometidos com armas de fogo por motivos fúteis em todo o país (brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito).

Pode-se afirmar, sem medo de errar, que os assassinatos cometidos por esses motivos são os mais fáceis de se investigar, já que estão praticamente prontos. Por exemplo, o marido mata a esposa. Quem é o autor!? Onde ele mora!? Outro exemplo: João mata o vizinho. Quem é o autor!? Onde ele mora!? Como dito, inquéritos assim nascem praticamente prontos.

O que o estudo não diz é o que foi feito com os 126.677 inquéritos restantes e sem solução até agora. Esses são os inquéritos que tentam desvendar crimes como o exemplo a seguir: o garupa desce da moto e, ainda usando o capacete, assalta uma mercearia. Na fuga, ele mata o balconista com um tiro e foge. São 93,9% de ocorrências não solucionadas, cuja maior parte certamente está relacionada à atividade criminosa profissional.

O Mapa da Violência 2013 encerra a discussão com uma descoberta:

Como conclui o mesmo documento O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Esse percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%. (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013, p. 55).

A ideia de validar todas as mortes provocadas por armas de fogo com base num percentual de 6,1% lembra o que se denomina Sofisma do Acidente, que consiste em adotar por habitual o que é acidental. Tem-se o seguinte raciocínio: a arma mata em situações banais. Logo, todas as armas matam em situações banais.

Finalmente, para quem conhece a estrutura das polícias judiciárias brasileiras e o carinho com que são tratadas pelo Estado, percentuais entre 5% e 8% já são fenomenais. Pena que a arma que mata ainda está com o criminoso, como todo policial sabe desde 1980.

Fonte 1: Mapa da Violência 2013.
Fonte 2: MS/SVS/DASIS – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM – Óbitos por causas externas - Grande Grupo CID9: E47 Acidentes de transporte – Grupo CID9: E471 Acidentes de trânsito de veículos a motor (1980 a 1995).
Fonte 2: MS/SVS/DASIS – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM – Óbitos por causas externas – Grande Grupo CID10: V01-V99 Acidentes de transporte (1996 a 2010).
Fonte 3: MS/SVS/DASIS – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM – Óbitos por causas externas – Grande Grupo CID9: E54 Suicídios e lesões auto-inflingidas – Grupo CID9: E54 Suicídios e lesões auto-inflingidas (1980 a 1995).
Fonte 3: MS/SVS/DASIS – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM – Óbitos por causas externas – Grande Grupo CID10: X60-X84 Lesões autoprovocadas voluntariamente
Grupo CID10: Lesões autoprovocadas intencionalmente (1996 a 2010).
Fonte 4: MS/SVS/DASIS - Sistema de Informações sobre Mortalidade – Sim – Óbitos por causas externas – Grande Grupo CID10: W00-X59 Outras causas externas de lesões acidentais – Grupo CID10: Quedas (2010).